Sem sombra de dúvidas a cidade de Pirenópolis, localizada na região leste do estado de Goiás, a 120 km da capital goiana, atualmente conta com uma das maiores manifestações religiosas locais. A festa do divino de Pirenópolis foi registrada como patrimônio cultural imaterial brasileiro, e reconhecido pelo IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional).
Mesclada de festejos religiosos e onde envolve toda a população da cidade, a festa é constituída de novenas, folias, procissão, missa, roqueira, mascarados, cavalhadas, pastorinhas e apresentação de vários grupos folclóricos. A figura central da festa é a presença do imperador que representa o rei e a corte lisbonense. A solenidade é precedida de uma procissão que leva o imperador até a igreja, este que o mandato está vencendo seu ano de reinado. Após a pregação da missa e da procissão, o padre convida o imperador atual junto com o que promoverá a festa no ano seguinte, para se aproximar do altar.
A escolha do novo imperador é feita através de sorteio, onde todos os pirenopolinos que se julgam em condições de realizar a festa, pode se inscrever. Todos os anos, na época da festa, além da cidade receber milhares de turistas de todo o país, os próprios moradores se envolvem para fazer acontecer, passando de geração para geração, o pirenopolinos tem histórias para contar. Heráclito Abadia, natural de Pirenópolis é um dos festejos do divino Espírito Santo, relata histórias e tradições familiares e conta a relação dele e da família com a festa.
Devoção em família: Geração marcada pela fé
Heráclito Abadia
Embora as estações do ano não sejam bem definidas no planalto central, o outono se destaca. Tem para mim características muito peculiares. Além do belíssimo por do sol que proporciona, tem um odor especial: tem cheiro de Festa do Divino. Sou de uma geração cuja trajetória de vida se confunde com esse evento cultural secular. Uma simbiose mágica que me faz compreender a mim mesmo e ser compreendido como um verdadeiro pirenopolino. Desde a infância convivo com a fé no Divino Espírito Santo. Nasci numa família que me ensinou a me guiar pelos sete dons do Espírito Santo e me inspirou à devoção. Identifico-me com cada elemento que compõe essa festa grandiosa.
Ao escrever esse texto, de início trago na memória a imagem de um menino impressionado com o vermelho intenso e o tremular da bandeira do Divino Espírito Santo sustentada nos braços do meu avô Benedito Sebastião de Arruda, saindo de sua fazenda para conduzir, como alferes, devotos foliões que de casa em casa na zona rural levavam a mensagem de fé e recolhiam contribuições para a realização da festa. Tenho orgulho de também ter sido um folião! Acompanhei a bandeira do divino nos anos de 2000, 2006 e 2007. Meu avô foi folião, meu pai foi folião, meu irmão foi folião e eu também fui folião. Tive a honra e a sorte de ter realizado na minha casa dois pousos de folia, nos anos de 2012 e 2013, interrompidos pela partida precoce do meu pai, mas que um dia hão de ser resgatados.
Mas a minha relação com essa festa remonta datas anteriores. Sendo ela o principal evento da cidade no passado, para onde se deslocavam turistas e filhos de Pirenópolis residentes em outras localidades, eu também aguardava ansioso a chegada do outono para poder desfrutar, de forma bastante lúdica, daqueles momentos incríveis que somente a Festa do Divino me proporcionava. As cavalhadas e com elas as barraquinhas, sorvetes, picolés; as pastorinhas e com elas a sensação incrível de ir ao teatro e a missa do domingo de pentecostes e com ela, claro, uma roupa nova.
A condição de mero expectador desses eventos não duraria muito. Sim, eu queria mais. Desejava também participar. Aos oito ou nove anos de idade, não me lembro bem, iniciei como integrante da contradança. Naquela época, a contradança era bastante prestigiada. Apresentávamos as danças, delicadamente coreografadas, após as novenas, na casa do imperador e no campo de cavalhadas. E para isso, ensaiávamos exaustivamente no Praia Clube. A experiência foi marcante e o som do acordeom e o trançado das fitas coloridas no mastro da contradança me fizeram ficar ali por mais dois anos. Lamento que hoje em dia não seja mais assim, e louvo as ações de salvaguarda que buscam o resgate desse elemento cultural importante.
Em 1981, dois grandes acontecimentos marcaram minha relação com a Festa do Divino. Naquele ano, pela primeira vez, experimentei a emoção de entrar o campo de cavalhadas como mascarado e me postar em frente do camarote do Imperador para ouvir o hino do Divino. Para um garoto de doze anos isso era demais! Montando o Curió, o cavalo que meu pai acabara de comprar, sentia-me o máximo. Era o prenúncio da minha liberdade rebelde. Confesso, porém, que toda essa afirmação era amparada pelo cuidado gentil de Nelson de Ozilda, que generosamente se dispôs a me acompanhar na aventura. Aliás, era uma condição imposta por minha mãe: Só sai de mascarado se o Nelson for junto. Depois disso, desfrutei dessa sensação por mais duas vezes a cavalo e outras tantas como mascarado a pé.
O outro grande evento daquele ano de 1981 marcou indelevelmente minha vida. Fiz minha estreia como o pastorzinho Benjamim nas Pastorinhas. Era a festa do meu Avô, que embora falecido no ano anterior, estava presente de forma intensa em cada um de nós. Mas a experiência não se limitou à alegria de ser o pequeno pastor. Foi uma verdadeira incursão na cultura pirenopolina. O convívio diário com Ita e Alaor e Dr. Wilson Pompeu nos ensaios das pastorinhas me proporcionou isso. Aprendi sobre a Festa do Divino com quem a trazia na alma. Contavam em detalhes sobre sua origem e falavam dos grandes momentos. Fui a um estágio elevado de compreensão sobre essa festa. O lúdico dava lugar ao comprometimento com a cultura e a certeza de que eu também, como pirenopolino, era responsável por manter essa tradição e de transmiti-la aos meus filhos. 37 anos mais tarde, revivi cada momento dessa experiência através do meu filho Pedro, que em 2018 entrava em cena no palco do Cine Teatro Pireneus como Benjamim para, assim como eu, ir à Belém adorar o Deus menino. Que orgulho!
Na adolescência, os caminhos seguidos me afastaram da possibilidade de continuar participando ativamente da Festa do Divino. Claro! Em todas elas eu estava lá novamente como expectador, à exceção da ocorrida em 1989 por circunstâncias muito particulares. Embora não tendo mais a oportunidade de sair de mascarado, ou, sei lá, ser o capeta das pastorinhas, gastei sola de sapado atrás da banda Fênix nas alvoradas, acompanhei Imperadores nos cortejos e assisti com o mesmo entusiamo às cavalhadas. Sobre as cavalhadas, aliás, assistia com certo orgulho. Afinal, boa parte dos desenhos que ornamentavam as capas dos cavaleiros foram criadas por mim e meu irmão Rouseveltt.
Em cada festa fazia questão de levar a Pirenópolis os amigos que não conheciam essa tradição. Apresentando a eles a Festa do Divino, de certa forma lhes apresentava um pouco mais de mim. Era importante que soubessem que muito do que sou, é em razão de ser parte disso. E numa dessas ocasiões, em 2008, levei um casal de amigos para conhecer a festa. Aquela da qual já havia lhes falado por várias vezes. Num sábado, véspera de pentecostes, os levei para ouvir a banda Fênix tocar ao meio dia na porta da igreja matriz. Lá encontrei Wilno Pompeu, figura marcante que contribuiu e esteve presente em todos os momentos da festa do meu avô. Em meio aos cumprimentos, ele de pronto me disse: “você é neto de Bastião de Arruda e por isso coloquei seu nome na sorte”. Pronto! O destino me fez mergulhar novamente nessa relação de amor profundo com a Festa do Divino. E eu estava, de fato, totalmente disponível a isso naquele momento.
A partir dali, foram doze anos, incluindo o sorteio de 2008, que esperei avidamente que num domingo de pentecostes eu fosse agraciado com a benção de ser escolhido Imperador do Divino. Até que isso viesse a ocorrer, foi mordomo das velas e da bandeira. No dia 11 de junho de 2019, ao lado da minha esposa e cercado de amigos, tive a honra, a glória, de ser sorteado como o 202º Imperador do Divino Espírito Santo. Senti uma emoção indescritível que transbordou em lágrimas de alegria em meio aos abraços calorosos de todos. E desde então vivo em completo estado de graça.
Reportagem por Laylla Alves, Leonardo Calazenço e Ybsã Oliveira.