Jovem estudando / Foto: Reprodução
Texto produzido por Mauricio de Lavenère durante estágio supervisinado
O novo ensino médio é uma criação da lei nº 13.415/2017, que alterou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional e ampliou o tempo do estudante na escola de 800 para 1000 horas anuais, fazendo com que o aluno, ao término do ensino médio, tenha, obrigatoriamente, três mil horas de aulas, sendo que 1800 destas horas tenham sido destinadas para as disciplinas obrigatórias da Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Além disso, ficou estabelecido a oferta de diferentes possibilidades de escolha, por parte dos alunos, de itinerários formativos com atenção principal nas áreas de conhecimento e na formação profisional de cada aluno.
Itinerários formativos são o conjunto de disciplinas, projetos, oficinas, núcleos de estudo, entre outras situações, que os estudantes poderão escolher em seu conteúdo programático sob a orientação da rede pública de ensino. As áreas de conhecimento disponibilizadas a partir de 2022 são Matemática e suas Tecnologias, Linguagem e suas Tecnologias, Ciências da Natureza e suas Tecnologias e Ciências Humanas e suas Tecnologias. E isso se dá em detrimento da obrigatoriedade de ofertar o ensino de Sociologia e Filosofia.
A rede particular de ensino não é obrigada a mudar sua grade de disciplinas e, na grande maioria de suas instituições, não o fará, acarretando o que alguns especialistas chamam de ‘concorrência desleal’ entre alunos de escolas públicas e particulares. Para falar sobre o Novo Ensino Médio, convidamos a professora regente de Artes Visuais da prefeitura de Goiânia, Kesia Ramos.
- Como o Novo Ensino Médio afeta as escolhas de estudantes? Eles já possuem condições para fazer tais escolhas?
O Novo Ensino Médio (NEM) possui itinerários formativos que correspondem que são divididos por áreas do conhecimento, assim como discriminado no ENEM, o currículo deve seguir as competências e habilidades da BNCC (1800h) e, para além disso, foi previsto 1200h de aulas que visam a inserção
do aluno ao mercado de trabalho sendo que a ênfase se dará conforme o interesse do estudante.
Parece maravilhoso, porém, com um olhar mais atento é possível identificar pontos perigosos no NEM. Esse novo modelo abre espaço para a figura do notório saber, onde qualquer pessoa sem formação pedagógica em área específica pode ministrar aulas nas escolas. É a iniciativa privada sendo levada
para dentro das escolas, priorizando no currículo aulas de português e matemática e deixando o itinerário formativo praticamente na mão de parceria particulares. Disciplinas das áreas de linguagens e humanidades foram extintas do currículo, em prejuízo a uma formação crítica e reflexiva. É um retorno à superficialidade e ao ensino tecnicista, que precariza a educação e que escancara a diferença de acesso à educação de excelência entre pobres e ricos. Não é mais necessário pensar, planejar e criar uma aula; tudo está disposto e deve ser seguido conforme já estruturaram nas apostilas.
Aulas como Arte, Sociologia, História e Filosofia aos poucos vão sumindo, pois esta perspectiva de ensino serve ao capital e isso vai minar a capacidade de nossas crianças e adolescentes de interpretar textos e questionar versões estabelecidas. Obviamente, eu – como professora – não acredito que esse tipo de proposta traga muitos benefícios e, tampouco, que os alunos tenham consciência suficientemente assertiva para fazer essas escolhas; parece-me óbvio que é um instrumento para a manutenção de um sistema precário, onde os interesses privados se sobrepõem aos interesses de uma formação para a emancipação dos indivíduos.
- Como convencer o estudante de uma escola pública de que o NEM é bom se as escolas privadas não deixaram de oferecer matérias tradicionais que o NEM excluiu?
Acredito que muitos já estão convencidos, pois, realmente o ensino médio no modelo anterior ao NEM já estava ultrapassado. Não ultrapassado em termos de disciplinas, mas no fazer docente, na organização da carga horária, nas estruturas, no currículo, na forma como se pensava a escola até então, e, para evitar a evasão escolar e produzir mão de obra barata, vender a ideia de que o ensino tecnicista é o que garantirá inserção rápida no mercado de trabalho, parece muito mais atrativo ao olhar dos alunos das escolas públicas, pois a grande maioria não tem muita perspectiva de ingresso em cursos superiores
elitizados.
Ganhar dinheiro rápido para um sustento mínimo, para quem é pobre, sem dúvidas parece a escolha certeira. Afinal, ser “um jovem de escola pública aceito em Harvard”, parece muito fora da realidade deles. Meritocracia aqui não cabe! A ausência de escolha também é escolha, não deles, mas de uma
proposta de currículo, claramente alienadora. Eles escutam que o ingresso à universidade é para qualquer pessoa que se esforce ( a tal meritocracia), mas muitos, de tão cansados de se esforçarem, de tão cansados de nadar, ou mesmo de ver outros nadando sem fim, as vezes decidem ir conforme a
corrente, conforme o fluxo.
Para além de qualquer tentativa de justificar tais complexidades sociais implicadas nesses discursos como sendo mero vitimismo, e necessário admitirmos que na História da Educação no Brasil, a educação voltada para ricos se difere muito para a que é voltada para os pobres. Nunca foi interesse para as classes elitizadas não refletirem sobre aquilo que eles já estão acostumados a reger.
- O NEM contribui com o aumento da evasão escolar dos estudantes?
Acredito que não, mas limita muito o que realmente seria essa não evasão. Ela futuramente, pode refletir-se em números e indicadores de desempenho nacional que não necessariamente condizem com a realidade dos particulares ou mesmo de um todo. Uma porcentagem em um outdoor que diz em letras
gigantes: “nota máxima no ENEM” pode ser extremamente atrativa! Porém, um número esconde muitos outros, nem sempre animadores. - Há demanda de professores para cumprir com todos os itinerários formativos propostos pelo NEM?
Difícil dizer, pois, existem Estados e Prefeituras abarrotados de profissionais contratados de forma temporária, são maioria frente aos profissionais da educação efetivos. Fato é que, toda reforma ou mudança na educação, por mínima que seja, exige profissionais qualificados. Nesse sentido, é preciso
pensar de onde veem esses profissionais, qual lugar eles irão ocupar e à benefício de quem.
O excesso de contratados com relação a quantidade de servidores efetivos, sinaliza a precarização da profissão docente e à qualquer reivindicação ou força sindical. É necessário entender a particularidade de cada Estado e de cada Prefeitura. De qualquer maneira a figura do notório saber e do profissional contratado já está posta o suficiente para “suprir” essas lacunas.
- Se tivesse a possibilidade, como reformaria o NEM? Quais são os desafios para os estudantes, sobretudo de escolas públicas?
Acredito que o maior desafio desses estudantes será manter um vínculo mínimo com um pensamento crítico frente a tantos instrumentos para aliená-lo. O que se diz sobre um país que prioriza a formação técnica dos mais pobres e fomenta a manutenção do status quo dos mais ricos? Difícil pensar de forma
individual sobre um NEM mais adequado, mas pensar numa solução para esse tipo de questão se torna mais fácil quando pensada de forma coletiva.
Esse NEM serve de fato para quem? Quem lucra e como lucra? Para pensar um novo ensino médio é preciso repensar todas as etapas da educação básica o
sistema de ingresso à universidade, o que é a escola, como reformular a estrutura das escolas e o que se espera de um egresso do ensino médio. É preciso também investir em formação continuada para professores, isso possibilita melhores condições de trabalho e estimula criação de um vínculo entre comunidade escolar e escola.