Redação: Eduardo Melo
Edição: Ana Maria Morais
A resenha proposta tem a função de levantar questões sobre a modernidade e as relações que temos com a cibercultura, além de nossas interações nas redes sociais, e como isso afeta o comportamento humano e nossos costumes.
Black mirror é um série britânica criado por Charlie Brooker, e tem direção de Dan Trachtenberg, Jakob Verbruggen, James Hawes, James Watkins, Joe Wright e Owen Harris. A produção é embalada por drama e ficção cientifica, utiliza de aspectos “futurísticos” e tecnológicos e expõe nuances da sociedade na contemporaneidade.
No episódio Quinze Milhões de Méritos, os avatares pedalam todos os dias na busca de seus méritos, que lhes dão “poderes” de escolha em programações, alimentação e propagandas. Bing (ator principal) destina sua herança para bancar a ida de uma garota que havia escutado cantar no banheiro de forma despretensiosa, ao chegar ao reality começou a cantar e surpreender os avatares com sua bela voz; no final de sua apresentação os jurados começaram a pressionar a menina a participar de produtos pornográficos, lhe oferecendo uma vida melhor, na qual não precisaria pedalar.
Os conteúdos mostram Abi (atriz principal) em cenas pornográficas, deixando Bing enfurecido e pensando em vingança. Todos os dias ele pedala bravamente para voltar ao reality, onde conseguiu os 15 milhões e chocou a todos ao final de sua participação, como o ensaio de um suicídio ao vivo. Depois disso, um dos jurados o convida para fazer um programa especial e Bing aceita o convite.
Nas últimas décadas, a indústria cultural possibilitou a multiplicação dos espetáculos por meio de espaços e sites, como forma de vendas de produtos e mercadorias em uma economia baseada na internet. Em uma das cenas é visto que os personagens precisam de méritos para escolher o conteúdo que irão assistir enquanto pedalam. O mesmo ocorre com a alimentação. As escolhas são consequência do desempenho, uma falsa sensação de poder que pode ser comparada à atualidade.
O reality mostrado no episodio se parece muito com os conteúdos que estamos acostumados assistir na TV aberta, são espetáculos de musica, dança, culinária e afins, que despertam o consumo e o desejo, o entretenimento na cultura do espetáculo se funde aos negócios e se mostra uma maneira lucrativa as organizações.
O entretenimento sempre foi o campo principal do espetáculo, na contemporaneidade é visto até nos produtos jornalísticos, na vida cotidiana, na política e de formas inovadoras dentro do ciberespaço.
“A cultura da mídia não aborda apenas grandes momentos da experiência contemporânea, mas também oferece material para a fantasia e sonho, modelando pensamento e comportamento, assim como construindo identidades” (KELLNER, 2006, p. 119). Em uma das cenas, uma jovem aguarda para ser chamada ao reality, esbraveja quando chamam outra pessoa, iludida pelo sonho de ter espaço, ser vista e reconhecida, parar de pedalar e conquistar “tranquilidade”.
Para Kellner, o espetáculo envolve os meios e instrumentos que incorporam valores básicos da sociedade contemporânea, que servem para doutrinar o estilo de vida dos indivíduos. Em um dos momentos, quando Bing se aproxima da bicicleta, um dos que estavam pedalando acompanhava uma programação que expunha pessoas obesas a diversas humilhações, ele ria e debochava junto do conteúdo que esbanjava desrespeito; na mesma cena, ele humilha e abusa de uma das faxineiras, demonstrando que seus costumes eram moldados pelos conteúdos que assistia.
O autor cita que erotizar é um dos atrativos da publicidade, o espetáculo do sexo é preponderante na cultura da mídia e está presente em vários produtos, além de ser um dos mais vendidos e lucrativos na sociedade. Os jurados escolheram Abi para produzir conteúdos pornográficos, vendendo um “rostinho bonito” e levando os telespectadores ao delírio, o consumo de pornografia é despertado após essa cena. Anteriormente o próprio Bing consumiu um desses conteúdos.
A espetacularização vem tomando conta do ciberespaço, permitindo o crescimento do infoentretenimento, a banalização dos acontecimentos cotidianos, as futilidades e o consumo alimentado pelas produções da indústria cultural. Quando questionado por Abi sobre o valor a ser pago para dar `s menina o direito de ir ao reality, Bing claramente diz não se importar, “cansado” da rotina e das coisas banais com as quais gasta seus méritos.
Um das criticas apontados por Guy debord na sua obra é que perdemos a sensação do tempo, acostumados ao cíclico, que compõe combinações homólogas: dia e noite, trabalho e repouso, a rotina e o disfarce consumível do tempo-mercadoria. São sucessões de momentos que compõem nosso cotidiano, no episódio é mostrado as repetições, ciclos que os atores faziam: pedalar, ganhar méritos, gastar méritos, dormir e acordar. Uma das relações mais intrigantes que podemos relacionar ao nosso dia a dia, somos reféns de uma rotina, vivendo pelo tempo pseudo-cíclico, perdendo a sensação do espaço temporal e imaginando dias rápidos regados pelo imediatismo.
O espetáculo desperta o consumo, consumir alimenta o ego com falsas sensações. Esses sentimentos mostram que os bens materiais nunca trazem felicidade alguma e que tudo está relacionado a momentos e pessoas. Estamos dentro de uma tela mudando a programação, rotineira, cíclica e perversa.
O episódio prova que “pedalamos” diversas vezes por futilidades, para não sair do lugar. Expõe que em vários momentos o sentimento de ser superior ao outro toma conta de nós, a falta de empatia e compaixão são reflexos notórios na atualidade.
Por fim, é brilhante como Black Mirror faz um paralelo entre ficção e realidade. Episódios com personagens mergulhados na tecnologia e críticas sociais contemporâneas mostram que nossa liberdade é totalmente restrita e que somos reféns de uma indústria cultural que visa à promoção do espetáculo e ao consumo.