A pequena gigante do crossfit

Dedicação da aluna Renata Rodrigues contribui para que mulheres superem desafios e preconceitos nessa modalidade.    

RENATA BASTOS

Já se passavam das 9h da manhã de um sábado de agosto, em Goiânia, e o dia dava sinais que aquela manhã seria de “treino intenso e prazeroso”, assim definido por Renata Rodrigues Silva. O crossfit passou a ser uma espécie de amigo fiel e encorajador em que a cada treino, a dedicação e o esforço permanecem rentes a sua postura, carregando consigo a certeza gratificante de mais um propósito que será concluído. Pelos caminhos, um olá amigável e abraços confortantes de quem acabou de cumprimentar, são colegas que treinam diariamente com Renata. Ela retribui com sorriso sincero, entre abraços e apertos de mãos que em cada olhar atento, observa as particularidades do desafio que está por vir. O professor vai iniciar o treino, mas antes faz anotações no quadro negro, alguns colegas se divertem enquanto grupos de meninas ajeitam suas roupas e outros alongam. Os rapazes competem qual físico é mais definido e gargalhadas são inevitáveis. Pode-se ouvir alguém dizer “hoje eu vou queimar!” e nisso o professor que acaba de realizar suas anotações rebate “prepara que este é o desafio de hoje.” Todos se assustam.

Aluna Renata Rodrigues treinando crossfit. Foto: Renata Bastos

Aos 31 anos, Renata segue cheia de otimismo, talvez por acreditar que todos os anos, incansavelmente debruçados sobre uma escrivaninha de estudos, dessem força e motivação para realizar qualquer atividade. Desde os 23 anos, os livros são os seus parceiros diários, a luta incessante, abdicação de parte da vida não poderia trazer outros resultados, e é por isso que aos 24 anos teve como mérito sua primeira aprovação num concurso público conceituado. As noites de sono e trabalho gratificante ficam para traz em forma de boas lembranças e conquistas, agora ela percebe que outra batalha está por iniciar e tem pela frente alunos de crossfit que almejam a superação de seus limites, dia após dia. Renata arruma os cabelos, cada vez que os dedos entrelaçam entre eles, um rabo de galo se forma. Toque daqui, ajuste ali, finaliza com batom de cor suave. É a sua autoestima que agora aflora. Para completar, tênis apropriado e uniforme da academia completam o visual desse dia de treino. “Se prepare, hoje será pesado!”, esbraveja o treinador e amigo, Bruno Leonardo.

Renata leva nas costas, na altura dos ombros e em forma de tatuagem, a imagem de Nossa Senhora Aparecida, a fé é espécie de amuleto e assim ela segue a vida protegida pela sua crença. A regata azul faz questão de mostrar o desenho, essa decisão de marcar o corpo está movida por razões pessoais. Medindo 1,63 de altura, ela se torna grande o bastante para realizar exercícios que exigem força e preparo físico. Magra, aparência jovem, sorridente, seus cabelos pretos que outrora estavam amarrados, agora dão lugar a trança molhada. Suas têmporas regadas a suor requerem descanso. Hoje, Renata convidou uma amiga para o treino experimental, Marianna Novais, 29, mulher alta de olhos claros e cabelos castanhos parece exausta. É nesse momento de descanso que Marianna seca com a própria roupa o seu rosto suado pelo esforço. O apoio surge em forma de palavras “parabéns, estou gostando de ver Marianna, é bem puxado não é?”, e o balançar de cabeça afirmando soa como forma de sentença, fazendo as duas rir momentaneamente e logo Renata retoma o treino.

“ As noites de sono e trabalho gratificante ficam para traz em forma de boas lembranças e conquistas, agora ela percebe que outra batalha está por iniciar e tem pela frente alunos de crossfit que almejam a superação de seus limites, dia após dia”.

Espaço grande, espécie de galpão, pintado em branco e preto, centraliza o símbolo da academia a alguns metros do chão na parede. Na camiseta de Renata a mesma insígnia aparece, está ligada a cultura dos guerreiros Maoris e significa “resiliência”. O lugar possui cordas penduradas, caixas de madeiras, argolas suspensas e pesos que se prendem numa barra de ferro podendo ficar mais pesados conforme cada peso é inserido. Isso a faz refletir por um instante sobre essa descrição simbólica, pois sabe que precisa de muita força para prosseguir com o objetivo. Em outra parte do galpão, aparelhos de musculação tomam conta do território e estruturas de ferro formam um retângulo para apoio. Tudo é utilizado por Renata no treinamento de resistência.

A música alta trata de animar o pessoal que pouco a pouco chega. Várias bolas estão disponíveis para os alunos, cada um pega a sua esperando o sinal do professor para indicar o tipo do treino e os minutos a serem executado. Para aquecer, espécie de dança das cadeiras, brincadeira de criança, só que agora trocada por bolas. Todos correm em círculos e à medida que a música começa, algumas bolas são retiradas e quando o som para, alguém deixa de sentar. A diferença é, se a pessoa ficar sem a bola, não é convidada a se retirar, ela realiza exercícios orientados pelo professor: flexões, abdominais segurando pesos, burpees, entre outros. A música para. Renata fica em pé e nesse momento é definido o tipo de exercício que ela irá executar. Os burpees são escolhidos, Renata e mais três colegas realizam o que Bruno pede. O treinamento continua cerca de mais dez minutos e encerra com aplausos de todos.

Uma corrida em volta do quarteirão dá sequência ao comando da lista de exercícios que foram escritos no quadro negro. Mais de quarenta pessoas, incluindo Renata e Marianna, correm, freneticamente, a fim de concluir a etapa proposta. O sol quente lá fora e céu azul sem nuvens, típico das manhãs de agosto, parece deixá-los cansados, apenas uma leve brisa refresca momentaneamente à medida que eles retornam para aos suas colocações. O professor da academia não para. Não há descanso quando o objetivo é resistência. Bruno Leonardo, 27, é quem comanda essa turma neste sábado. Enfático e otimista, ele grita eufórico um “bora, bora, anima aí pessoal!”. Renata puxa Marianna que rebate com sorriso forçado, mas ao mesmo tempo determinado a não desistir.

Os alunos já observam o próximo exercício e enfileiram caixas de madeira no chão, deixando pequeno espaço para não baterem uns nos outros. Eles pulam e descem sobre elas várias vezes, sob o comando de Bruno. Esse exercício tem finalidade de fortalecer os músculos das pernas, barriga e lombar. Cerca de 30 pulos subindo e descendo encerra essa etapa. Renata demonstra força e equilíbrio ao concluir sua atividade no mesmo ritmo que começou e isso é resultado do crossfit, a mesma já não sente tantas dores e fadigas como antes. Já Mariana, sua amiga e convidada, sofre com as pernas trêmulas e um cansaço visível, sinal que a corrida não foi fácil e o treino com as caixas a deixou exausta.

A inspiração

Fabrício Silva, 34, irmão, amigo e referência de Renata. Assim é definido o carinho, respeito e amor por ele. A paixão pelo irmão vem seguida de uma voz embargada, olhos rasos d’água e sorriso trêmulo. Algo é certo, Fabrício é o tipo de irmão que tem os mesmos princípios de Renata, a parceria e a cumplicidade fizeram companheiros de luta, estudos e de vida. Isso deve ao fato de Fabrício também conquistar a aprovação num concurso público e ver seus sonhos realizarem na medida em que seu esforço era demonstrado. Ao ingressar no crossfit, ele levou a irmã a conhecer e apaixonar pelo esporte e agora ela supera desafios, começando com o preconceito neste esporte. Cada vez mais mulheres treinam, competem profissionalmente e Renata já sofreu na pele ao ver suas mãos calejadas, sendo assunto de deboche numa roda de amigos. E isso a incomodou? “Pouco, mas não pelas mãos calejadas e sim pela falta de respeito com a minha escolha”, enfatiza. Ela acredita que gerar essa inquietação e reflexão quanto ao papel feminino em esportes que exigem força e resistência, proporciona nova forma de enxergar a mulher na sociedade.

A competição de crossfit, ocorrida no mês de junho no Goiânia Arena, na Capital, contou excelentes atletas de nível nacional. A academia em que os irmãos treinam, fez a seleção de duplas e trios (por equipe) dos alunos para o campeonato e Renata não participou. Apesar de estar há algum tempo no crossfit, ela acredita não ser preparada para competições ainda, mas foi torcer pelo irmão, que iria disputar a competições por equipes com três competidores cada. A academia saiu bem na competição nesse seguimento, dentre oitenta participantes por equipe, conseguiu o 25º lugar no ranking do campeonato. Para Renata, colocação como essa, foi sem dúvida divisor de águas para o irmão e motivação para ela. O mérito veio após ele ser diagnosticado com diabetes do tipo 1.

Não é por acaso que os irmãos se preparam para realizar o próximo exercício. Eles amam a companhia do outro e fazem questão de estarem juntos. O treino, agora orientado pelo professor e amigo Umberto Filho, 31, exige atenção e resistência. Trata-se do levantamento de barras, Renata ajusta quinze quilos em cada lado, enquanto Fabrício coloca sessenta, no total. Fabrício segue atrás de Renata observando-a. Cada movimento é acompanhado pelo professor, que anda do lado para outro identificando possíveis falhas na execução, e também, pelo irmão. A preocupação com essa atividade deixa claro, qualquer movimento incerto pode lesioná-los. Os pesos agora são erguidos e Renata solta um gemido na última sequência de três levantamentos, sentindo cada músculo de seu corpo contrair. Ela agora reveza com outra amiga, questão apenas de beber água e retomar o lugar.

Umberto Filho reitera o quanto Renata e Fabrício são importantes para ele, amizade que nasceu de um esporte, vai muito além dos treinos e cobranças. Renata admira o amigo e treinador, argumenta que os resultados adquiridos ao longo dos treinamentos são frutos do empenho e seriedade do professor. Ele acredita na força das mulheres no crossfit, vê essa realidade como promissora uma vez que o preconceito contra as mulheres no esporte em geral tem se superado dia após dia. “Hoje temos mais mulheres que homens aqui na academia, Renata é uma delas, e é bacana ver essa evolução. Não existe diferença entre homens e mulheres aqui, o preconceito existe na cabeça de quem desconhece o esporte.”, diz Umberto.

“Hoje temos mais mulheres que homens aqui na academia, Renata é uma delas, e é bacana ver essa evolução. Não existe diferença entre homens e mulheres aqui, o preconceito existe na cabeça de quem desconhece o esporte”.

Quando Renata encontra pela frente cordas, percebe que precisa subir até o teto usando apenas os braços e pernas como apoio, se alegra ao dizer que foi o seu maior desafio, não acreditava que conseguiria algum dia. Excitada, demonstra com segurança para a Marianna que seus medos foram superados. A cada movimento feito para se elevar, expressão fechada tomava-lhe a face, a decida necessita de segurança, tombo ou simples torção no pé poderia afastá-la por muitos dias do crossfit. Ao pisar no chão, levou a mão sobre a perna dizendo que a corda a queimou, mas já se acostumou, deixando assim amiga menos tensa. Seus olhos atentos almejam o próximo exercício, ela vai levantar peso mesmo acompanhando a amiga no treino dos iniciantes. E dizer que esse treino foi para iniciantes acaba desconcertando quem vai para uma aula experimental. Caras e bocas. Longa gargalhada finaliza a seção.

O treino para veteranos consiste em simular um circuito competitivo de levantamento de barras com pesos, subir em cordas numa sequência de vezes, fazer barras erguendo o corpo acima do próprio corpo, corridas, abdominais com pesos todos cronometrados. Renata faz esse treinamento pesado e apesar de ser nova no esporte, batalha há muito tempo pela igualdade quando o assunto é a luta contra o preconceito. Ela vai à academia ao menos quatro vezes por semana, quase sempre acompanhada de Fabrício. Sua condição física melhorou, ganhou resistência, equilíbrio e força com os treinamentos e não pensa em abandonar o esporte tão cedo. Marianna fala na possibilidade de se matricular no crossfit, Fabrício foca cada dia mais nos treinos e quanto ao futuro do esporte, Renata reitera a vontade de popularizar cada vez mais entre as mulheres, atrair parceiros para essa modalidade e ser reconhecido também como “o esporte de mulheres de força em prol da igualdade.” finaliza. O treino de hoje é encerrado e alguns alunos dispersam.O sábado foi como Renata esperava. Intenso e prazeroso.

“… quanto ao futuro do crossfit, Renata reitera a vontade do esporte popularizar cada vez mais entre as mulheres, atrair parceiros para essa modalidade e ser reconhecido também como “o esporte de mulheres de força em prol da igualdade social”.

Longe dos treinos, a vida de Renata segue normal. O uniforme azul fica pra traz, dando lugar à sapatilha, shorts, blusa e brincos prateados para acompanhar. Ela vai num passeio com sua mãe que a recebe com alegria. Tarde agitada com compras e risadas, elas se divertem. Nas sacolas, roupas de ginástica e tênis novo, mesmo distante da academia ela não esquece os treinos. A intensidade liga a Renata ao esporte, talvez seja esse um dos motivos para tanta dedicação. Essa característica a faz almejar os resultados que lhe dão prazer e recompensa. A persistência nesse esporte seja contra o preconceito ou a superação de seus próprios medos, de fato resta dizer que o crossfit ensina a ela grande lição: lugar de mulher é onde ela quer estar e não onde a sociedade determina.

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