No bairro Real Conquista, é comum ver animais vagando pelas ruas | Crédito: Melissa Brito
Evandro Ribeiro de Castro e Melissa Brito
Em julho deste ano, a Holanda conseguiu ser o único país do mundo sem cachorros de rua. Por meio de esforços do governo em parcerias com instituições de proteção aos animais que começaram há mais de 100 anos, o país europeu conseguiu dar um lar para todos os 2 milhões de cachorrinhos que vivem lá.
A Holanda foi considerada um dos países mais amigáveis para pets do mundo. Há diversos estabelecimentos, como bares e restaurantes, que aceitam a entrada dos animais. Lá, um cachorro de rua é visto com estranheza, uma vez que todos devem estar acompanhados do dono ou sendo acolhidos em abrigo. O indivíduo que for visto maltratando um cão pode pegar até 5 anos de prisão e pagar o equivalente a meio milhão de reais. O país investiu fortemente em programas de acolhimento, vacinação e castração desses animais, resultando em um total de 0 cachorros na rua.
Diante desse marco impressionante, é um tanto quanto chocante de se comparar com a realidade brasileira em que, segundo dados da Organização Mundial de Saúde (OMS), havia cerca de 30 milhões de animais abandonados em 2022. Desse total, 10 milhões eram gatos e 20 milhões, cães. E, aproximando mais o foco, como é a realidade de Goiânia? Quais as políticas públicas que o município oferece aos animais?
A reportagem tentou entrar em contato com a Agência Municipal do Meio Ambiente (Amma) para obter dados oficiais, mas não teve resposta. No entanto, segundo uma estimativa populacional do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2021, existiam mais de 30 mil cães em situação de rua em Goiânia. Não há uma estimativa para gatos.
Para atender aos animais do município, existe o Conselho Municipal de Proteção e Bem-Estar Animal, que confere ao poder público as competências para incentivar a guarda responsável dos animais, promover a busca por condições de vida qualificada, propor e auxiliar a execução de políticas públicas e deliberar sobre todas e quaisquer questões afetas à defesa, à proteção e ao bem-estar dos animais.
Uma das grandes conquistas em relação à promoção da vida desses animais em situação de rua foi a inauguração do primeiro hospital público veterinário de Goiânia, a Unidade de Pronto Atendimento Veterinário (UPAVet), em novembro de 2020, localizado no Setor Balneário Meia Ponte. No dia 31 de março deste ano, a clínica recebeu um centro cirúrgico para realização de pequenas cirurgias, como castração.
Ludmila Oliveira, gerente de bem-estar e saúde animal do UPAVet, afirma que o hospital consegue atender uma média de 20 consultas por mês e que os casos mais comuns são os de maus-tratos aos animais.
O UPAVet é uma unidade gratuita, que atende a população carente e casos emergenciais. Funciona por meio de parcerias com diversas organizações não governamentais (ONGs), com a Universidade Federal de Goiás (UFG) e, principalmente, com a Comissão do Direito e Bem-estar dos Animais, onde a vereadora Lucíula Cascão Correa Oliveira, mais conhecida como Lucíula do Recanto, atua.
A vereadora informa que a Comissão visa garantir os direitos dos animais, trabalhando para denunciar os malfeitores e conscientizar a população sobre o bem-estar dos animais. Ela também conta que as parcerias com o UPAVet, possíveis por aprovação do poder público, garantiram o tratamento e a castração aos animais.
“Temos um trabalho muito bonito com a UPAVet, através da prefeitura, que nos permitiu esse tratamento e a castração. Trabalhamos hoje para evitar que esse índice de abandono aumente amanhã. Não só esse, mas de qualquer tipo de maus-tratos aos animais, desde agressões a casos de abandono, buscando sempre punir os culpados. Sabemos que a UPAVet hoje ainda é muito pouco para a enorme demanda, mas o importante é começar”, destaca Lucíula do Recanto.
A vereadora vê o UPAVet como a realização de um sonho pela causa dos animais em Goiânia, mas reconhece que ele ainda está sendo construído lentamente. Diversas emendas foram feitas pela Comissão em que ela atua para fornecer maior estrutura à clínica, que já conta com diversas salas para atender aos animais. Lucíula também afirma que o hospital conseguiu receber suporte de diversos veterinários da UFG para atender várias demandas. Além disso, a parlamentar afirma que existe uma previsão para um novo UPAVet em 2024.
Muitos dos esforços de proteção aos animais de rua em Goiânia se devem à vereadora. Em fevereiro deste ano, foi sancionada uma lei de autoria dela que assegura a qualquer pessoa o direito de fornecer água e alimento a animais de rua. Além disso, ela conta que um de seus projetos, o Bolsa Castração, foi seguido em diversos municípios por todo o país.
“Temos em trâmite 46 leis a serem aprovadas. Um desses projetos de lei é o Bolsa Castração, copiado por 48 municípios do Brasil. A Prefeitura irá liberar um cartão para uma família, dando a ela o direito a uma castração. E, no caso de famílias com dez cães, a família teria direito a cinco castrações”, explica a vereadora.
Lucíola do Recanto explica que este trabalho é feito entre o poder público e o privado, uma vez que a Prefeitura irá reembolsar as clínicas que participarem do projeto. “Acredito que a maior briga foi sobre a aprovação do direito de alimentar e hidratar os animais nas ruas, o que era proibido até então. Mas o Prefeito aprovou e hoje todos têm o direito e obrigação de alimentar e matar a sede do animal”, aposta a parlamentar.
No entanto, mesmo com a realização do sonho e diversos esforços da Comissão, a vereadora reconhece que há diversos impasses na causa dos animais em Goiânia e que o poder público tem de fazer mais pela causa.
Abrigos e protetores
Ficou claro que a questão dos animais de rua em Goiânia é um problema que envolve muitas questões, indo muito além da esfera pública. Júlia Alves, diretora do Abrigo dos Animais Refugados, que possui parceria com a prefeitura, conta para a reportagem a triste situação dos abrigos na capital:
Além dos abrigos, existem pessoas, chamados de Protetores, que fazem o possível para acolher e cuidar dos animais de rua, atendendo ao direito mencionado por Lucíula. No entanto, assim como os abrigos, essas pessoas também sofrem pela ausência do Poder Público e não conseguem fornecer ajuda aos animais. Questionamos Adriana Camargo, Protetora dos animais do setor Real Conquista, que afirma ter ajudado mais de 200 animais de rua, sobre a presença da prefeitura onde mora e os problemas que enfrenta:
Adriana também revelou o posicionamento que recebeu da Amma quando solicitou por ajuda, revelando uma situação infeliz que aconteceu com os animais da região:
“Eu tenho que cuidar, dar vacina, alimentar e cuidar dos animais. Já tentei entrar em contato com a Amma, e me disseram que eles não pegam os animais. Inclusive, uma vez apareceu um cavalo abandonado, muito maltratado. Chamei a Amma, a prefeitura, e ninguém apareceu. O bichinho morreu ali. Um monte de cachorro abandonados, amarrados aqui perto, chamei Amma, e nada”, revela Adriana.
A reportagem também perguntou para a protetora se ela já precisou de auxílio da UPAVet:
“Tive uma cachorra que estava com um tumor na vagina, sangrando dia e noite. Levei na UPAVet, e me passaram um ultrassom que custava R$ 300, e eu não tinha condições na época. Depois me passou exames de sangue, castração…tudo ali ficou R$ 1.000. A cachorra morreu por falta de cuidados. Não tem praticamente ninguém que me ajude nessa região”, conta Adriana.
Diante a negligência dos órgãos municipais, Adriana expressou o que ela deseja ver para uma futura gestão na capital goiana:
“Eu espero que tenha algum projeto que possa, realmente, fazer a castração para a população carente. Porque aquela UPAVet, me desculpe, mas aquilo é só balela. Uma burocracia enorme que atende só pessoas em estado de pobreza extrema. Como que uma pessoa nessa situação vai daqui [Real Conquista] para o Balneário, sendo que ela não tem nem o que comer? Espero que as próximas gestões tragam projetos realmente eficazes, que funcione. Que dê castração para os animais, uma condição de vida melhor e que não seja tão negligente. Muitas pessoas não enxergam os animais nas ruas. Para eles, nem existem”, diz Adriana.
Para encerrar sua fala, a protetora se abriu sobre o que os animais representam para ela:
Castração de animais e o impacto no meio ambiente
Assim como Lucíula do Recanto, diversas ONGs pelo Brasil lutam pela realização de castrações gratuitas nos municípios, a fim de diminuir a procriação dos animais em situação de rua. Um movimento que ganhou bastante relevância recentemente pelo país foram os castramóveis, que são veículos equipados com material e pessoal técnico para realizar a castração dos animais. Recentemente, a Prefeitura de Aparecida de Goiânia, região metropolitana da capital, firmou parceria com o Instituto Caravana Au Móvel (ICAM), para inaugurar a unidade no Mutirão de Aparecida. Em entrevista ao Araguaia On-line, a diretora do ICAM, falou sobre o funcionamento do castramóvel com as prefeituras e qual a demanda da clínica.
Como você avalia o papel dos castramóveis no cenário de controle de natalidade e atendimento aos animais?
O Castramóvel é o nome popular que as Unidades Móveis de Esterilização e Saúde recebem. São regulamentadas por diversas normas federais e devem estar ligadas, oficialmente, a uma instituição pública ou privada de educação ou clínica veterinária. Igual a uma clínica fixa, a Unidade Móvel é fiscalizada regularmente e tem que ter diversos alvarás. Eu acho de extrema importância a existência desses veículos para alcançar o público que reside em cidades onde não existam clínicas veterinárias capacitadas para realização desse tipo de cirurgias. O Brasil, com sua enorme extensão territorial, necessita muito desse tipo de serviço itinerante.
Qual é o tamanho da demanda e quanto vocês conseguem atender?
Nossas clínicas têm longo histórico de castrações populares. Acredito que já realizamos cerca de 70 mil castrações a preços populares. Já atendemos diversos municípios de Goiás como Itauçu, Itaberaí,Ordália, Serranópolis e Aparecida de Goiânia – onde fica nossa sede e atendemos recentemente, no final de agosto, em um mutirão –, e diversos outros. Onde o Castramóvel vai, existe uma demanda por ele. Em Aparecida, por exemplo, abrimos as inscrições próximo à véspera do mutirão e elas se encerraram pouco depois. Em média, realizamos 40 castrações por dia.
Como é estabelecida a parceria com as prefeituras?
De acordo com as normas que regulamentam o funcionamento das Unidades Móveis, nós firmamos convênios com prefeituras e ONGs que sejam regularizadas oficialmente, para então protocolar o pedido de autorização perante o Conselho Regional de Medicina Veterinária, que é quem defere ou indefere os projetos de mutirões de castração. São observados o exercício legal dos veterinários, a quantidade de equipamentos, insumos, fármacos e o passo a passo operacional. É exigido que a Unidade Móvel possua ambientes pré e pós operatórios similares aos de um bloco cirúrgico de clínica fixa, tudo pensando no bem estar e saúde dos animais. Por exemplo, evitar contaminação, evitar que o animal seja operado de forma não protocolar ou antiética. Os convênios normalmente são realizados por meio das secretarias de saúde ou meio ambiente e possuem trâmites bastante burocráticos e demandam tempo.
O poder público fornece apoio? Se sim, de que tipo?
Na minha opinião, as cidades, enquanto administração pública, poderiam fazer muito mais. Mas, creio que os gestores derrapam na falta de assessoria com conhecimento verdadeiro na área. Quanto a mim, que vivo a realidade de Aparecida de Goiânia, estou feliz por ver que o município engrenou uma marcha ao firmar parceria conosco para realizar o Mutirão, e estou me esforçando juntamente com um bom grupo de pessoas comprometidas para que nunca mais esse veículo estacione. Viva o Castramóvel!
O que diz a especialista?
Pode-se notar que, mesmo com a presença de parcerias com o Poder Público, ainda não é suficiente para atender as demandas hoje existentes. Recentemente, na UFG, a Professora e Doutora da Escola de Veterinária e Zootecnia, Luciana Batalha de Miranda Araújo, comandou um simpósio sobre controle e situação de animais errantes. Questionada sobre a situação dos animais de rua em Goiânia e na Região Metropolitana da capital, Luciana Batalha compartilhou sua insatisfação:
“É a pior possível. Infelizmente, a gente não tem política pública que possa ser aplicada de forma efetiva para começar a resolver esse problema. Existem várias propostas sendo feitas, mas efetivamente quando se tem algum problema com excesso de animais de uma população em determinada região, não tem como fazer o resgate. Não tem como levar esses animais para algum lugar e fazer todo o processo de marcação e identificação desse animal com microchip, além de uma avaliação clínica e a castração dele. Muita falação, mas sem ação”, lamenta a professora.
Luciana Batalha também pontuou sobre o impacto significante desses animais ao meio ambiente. Gatos causam predação, enquanto cães transmitem diversas doenças, afetando negativamente a vida livre. A UFG, por meio do hospital veterinário, atua como ponto de apoio administrativo à UPA, oferecendo atendimento e cirurgias gratuitas. No entanto, a redução de verbas compromete a capacidade da universidade de lidar com as despesas.
“A falta de uma distribuição adequada de verbas contribui para a ineficácia das ações em comparação com estados mais avançados, como Minas Gerais, que tem avançado bastante na questão. A universidade foca em educação, conscientizando a população sobre a importância da castração e não abandono de animais. É preciso uma abordagem educacional contínua para promover a responsabilidade dos proprietários”, comenta a professora.
Ao ser questionada sobre a possibilidade de replicar o modelo holandês, Luciana Batalha ressalta as diferenças sociais e econômicas entre os países. Ela enfatiza a importância da educação sanitária universal, destacando a obrigatoriedade da castração como medida de saúde pública. A pesquisadora destaca a necessidade de investimentos em programas educacionais permanentes e punições para maus-tratos, visando uma transformação cultural que reduza o número de animais de rua ao longo das gerações.
“Eu rezo para que um dia o Brasil chegue ao que a Holanda fez. Talvez meus netos ou bisnetos vejam isso, porque acredito que isso não seja feito em menos do que quarenta, sessenta anos, infelizmente”, conclui a pesquisadora da UFG.
A situação em Goiânia para os animais de rua é crítica por diversos motivos diferentes. Protetores e abrigos de diversos locais da capital não conseguem se manter sem o apoio municipal. ONGs são atrasadas por processos burocráticos, e há uma ausência do Poder Público para “tomar isso com as mãos e tocar adiante de forma correta”, como diz a Professora e Doutora Luciana.
No entanto, o que pode ser feito atualmente é apoiar a causa e promovê-la. A educação e conscientização sobre a situação dos animais de rua deve ser efetuada para que mais e mais pessoas lutem e sejam ouvidas pelo Executivo e Legislativo. Assim, medidas efetivas podem ser tomadas e colocadas em prática. Pode ser que demoremos para chegarmos ao que a Holanda fez, mas a mudança tem que começar. Lutar pelos direitos dos animais, para que eles tenham uma casa, um lar em que eles possam ser tratados com todo o carinho que merecem.